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Umidade literária

 

Foto: Brisolara

“Eu, que vivo no gasômetro, tenho tomado distância de tudo o que é sólido. À margem das formas, sou reservatório de coisas desfeitas. É meu rosto líquido que vejo na poça de chuva esquecida pela terra sob minha janela, rosto de quem quis infinitamente comprimir os fluidos da vida na esperança de guardá-la. No gasômetro as coisas não são sólidas, mas custam a passar. Hoje um grito de criança, sumido da varanda em meu passado, veio vibrar sobre o telhado como o canto de uma ave vindo agonizar no ninho antes de morrer; ontem, foi um pardal que desceu na água.”

 Satolep (CosacNaify) é o segundo livro do gaúcho Vitor Ramil, mais conhecido pela música do que pela literatura. Assim como as composições escritas por Ramil, seu romance evoca o sul. Satolep é uma cidade perdida no meio da umidade intensa típica do extremo sul do Brasil. O clima tem sua importância na narrativa de Ramil. O tempo, a neblina, o sol e a cerração atuam de forma definitiva nos personagens. Ramil não dá nome ao protagonista, mas dá a este uma história misteriosa. A figura desembarca em Satolep em busca da própria alma perdida na adolescência, quando trocou a cidade natal por uma metrópole qualquer. As referências autobiográficas são evidentes e o autor não as evita. Tal qual seu protagonista, Ramil deixou sua Pelotas natal na adolescência rumo a Porto Alegre. Voltou, coincidentemente, com a mesma idade do personagem. E Satolep é Pelotas lida de trás pra frente. Ramil começou a escrever o livro depois de se encantar com fotografias da cidade feitas na década de 1920. Para cada imagem escrevia um texto, até que deu liga e do exercício saiu um romance. Parte das fotos antigas foram extraídas do álbum para ilustrar o livro. Levam a assinatura de Brisolara, um fotógrafo cuja história ninguém sabe ao certo. Abaixo, Ramil fala sobre Satolep.

 “Nasci em Pelotas e saí com 17 anos. Fui para Porto Alegre e, cinco anos depois, para o Rio. Depois voltei para cá (Pelotas) não saí mais. Estava começando a escrever meu primeiro romance, tinha feito o disco Ramilnonga e era um grande risco voltar para o interior, mas foi a coisa mais acertada que fiz.”

“Eu tinha comigo um álbum de Pelotas feito em 1922 e um dia resolvi escrever para as fotos uma pequena ficção e passei a escrever para várias fotos. E uma das pequenas histórias cresceu e foi aos poucos transformada em romance.”

“Não há no livro uma intenção consciente de contar minha história, minha volta (a Pelotas). Quando me dei conta que tinha voltado para cá com a idade do meu personagem já estava com livro na metade. Talvez o que tenha de meu são algumas questões bem pontuais e alguns comentários sobre música e estética do frio.”

“Tem uma questão que acabo usando que é o João Simões Lopes Neto como espécie de mestre do meu personagem. Leitor nunca sabe o nome dele porque é um livro sobre a complexidade de saber quem a gente é, como lidar com isso, como lidar com a formação da gente na família, na sociedade.”

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